A economia influencia na forma como os pais criam seus filhos, afirmam pesquisadores de Yale, que estudam o desenvolvimento econômico. E o aumento da desigualdade no mundo nos últimos anos fez com que as famílias passassem a cobrar mais desempenho e superproteger crianças e jovens – chegando ao extremo dos chamados “pais helicópteros”, que interferem exageradamente nas escolhas dos filhos.
“Em ambientes competitivos, o sucesso na educação tornou-se muito mais relevante para o sucesso econômico e social futuro, o que induziu os pais a aumentarem seus esforços para apoiar e pressionar os filhos a alcançar êxito escolar. Isso tem sido especialmente importante entre os pais da classe média”, disse ao Estadão o economista e professor da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, Fabrizio Zilibotti.
O pesquisador italiano e o alemão Matthias Doepke, da London School of Economics, são autores do livro Love, Money, and Parenting (Amor, Dinheiro e Parentalidade, em tradução livre), da Princeton University Press, ainda não disponível em português.
A obra reúne dados de diversos países para mostrar como cuidar dos filhos se tornou uma atividade “mais intensa” nas últimas décadas. As pesquisas indicam que aumentou em mais de 3 vezes o tempo que os pais dedicam aos filhos, em relação aos anos 1970, ajudando em lições de casa ou com cuidado.
“Poderíamos suspeitar que os pais simplesmente aprenderam a gostar de brincar com seus filhos. Eles podem fazer isso também, mas a maior parte da nova paternidade intensiva consiste em empurrar as crianças para se tornarem realizadoras precoces.”
Zilibotti fala também do prejuízo do excesso de atividades acadêmicas e esportivas que as famílias organizam para os filhos, em vez de valorizar a independência e o tempo dedicado a suas próprias escolhas e aptidões.
“Pode ser racional individualmente para os pais empurrar seus filhos para o sucesso, mas estaríamos melhor se todos os pais simultaneamente reduzissem a pressão, e a proteção, que exercem sobre eles”, afirma.
Ele, no entanto, acredita que a inteligência artificial pode ajudar a mudar esse cenário, já que os robôs passam a dominar habilidades técnicas e substituir ocupações. “A IA pode ser menos apta a realizar tarefas que exigem imaginação e criatividade”, afirma o pesquisador. “E os pais podem perceber que sufocar a independência de seus filhos não os está ajudando a ser criativos. Isso pode fazer com que as crianças sigam suas vocações naturais, por exemplo, em vez de se tornarem todos advogados ou engenheiros.”
Veja a seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão.
Qual é a relação que suas pesquisas mostram entre a economia e a maneira como os pais criam seus filhos?
A maioria dos pais, antes de tudo, quer que seus filhos sejam felizes. O sucesso econômico muitas vezes faz parte desse objetivo, mas pode haver outros objetivos que os pais valorizam e esses podem variar ao longo do tempo e entre culturas. O ponto geral é que os pais fazem o melhor que podem para alcançar esses objetivos, sujeitos às restrições que enfrentam, que podem ser de natureza financeira, de tempo ou cognitivas. Eles podem também não ter as habilidades socioemocionais para motivar os filhos ou induzi-los a se comportar de uma determinada maneira. Se as restrições mudarem, o comportamento também muda. Assim, os pais normalmente respondem aos incentivos que a sociedade oferece, especialmente àqueles que podem ser relevantes para a criação dos filhos. Essa perspectiva explica muito sobre a parentalidade.
Como você acredita que isso mudou ao longo dos anos? Por que vocês dizem no livro que a parentalidade é mais intensa hoje em dia?
Novamente, a ideia é que diferentes sociedades fornecem diferentes incentivos e os pais respondem a eles. Antigamente, os pais exigiam obediência e aplicavam punições corporais quando as crianças não obedeciam. Um estudo de 1975 concluiu que, de 200 conselheiros sobre criação de filhos antes de 1770, apenas 3 não recomendavam que os pais batessem em seus filhos. As coisas começaram a mudar lentamente no século XIX, mas foi após a Segunda Guerra Mundial que vimos uma abordagem diferente, especialmente nos países ocidentais. As décadas de 1960 e 1970 foram caracterizadas por uma virada fortemente antiautoritária. Em contraste, a partir dos anos 1980 até os dias de hoje, a parentalidade se tornou mais intensa, seja na forma de pais “helicóptero”, hiperprotetores, ou na de mães “tigre”, exigentes, especialmente populares no Leste Asiático.
Os dados confirmam que, nas últimas décadas, os pais têm dedicado uma parte crescente do seu tempo à criação dos filhos. O casal médio nos EUA passa oito horas e meia por semana brincando, lendo, conversando com seus filhos e ajudando-os com a lição de casa. Isso é 3,5 vezes mais horas do que pais americanos faziam em 1976. Se levarmos em conta que hoje há menos filhos para cuidar, pela queda da natalidade, a estimativa é de que as interações aumentaram pelo menos de uma a duas horas por dia em vários países.
Quais as explicações e consequências disso?
Entre os muitos fatores, essas mudanças acompanham, tanto entre países quanto ao longo do tempo, as tendências de desigualdade de renda e retorno à educação. O impacto da paternidade intensiva reflete-se nas experiências das crianças. Nos Estados Unidos, o percentual de crianças que vão a pé ou de bicicleta para a escola caiu de 41% para 13% e o tempo de brincadeira livre diminuiu, enquanto o usado para tarefas casa mais do que dobrou. Poderíamos suspeitar que os pais simplesmente aprenderam a gostar de brincar com seus filhos. Eles podem fazer isso também, mas a maior parte da nova paternidade intensiva consiste em empurrar as crianças para se tornarem realizadoras precoces.
Em resumo, o sucesso na educação tornou-se muito mais relevante para o sucesso econômico e social futuro, o que induziu os pais a aumentar seus esforços para apoiar e pressionar os filhos a alcançar êxito escolar. Isso tem sido especialmente importante entre os pais da classe média.
Por que entre os pais de classe média?
Isso é o que vemos nos dados. São principalmente os pais que têm mais anos de escolaridade que aumentaram a quantidade de tempo que passam em contato com seus filhos. Em segundo lugar, em famílias desfavorecidas, os pais não podem competir em fornecer atividades adicionais para seus filhos. Elas são caras e muitas vezes exigem muito envolvimento dos pais. Além disso, pais com menos escolaridade muitas vezes não possuem as habilidades sociais que podem ser usadas para motivar os filhos a se destacarem.
Que exemplos vocês veem nos dados que mostram essa relação da desigualdade com a forma de criar os filhos?
Em países com baixa desigualdade, como Suécia ou Noruega, as consequências do sucesso ou fracasso educacional são menos dramáticas do que em países como os EUA ou China, onde entrar em uma boa universidade e ter um bom desempenho têm grandes efeitos no futuro sucesso econômico de uma criança. O mesmo é verdade quando comparamos a década de 1970 com os dias atuais. Nos anos 1970, a desigualdade econômica era menor e havia muitas boas oportunidades de emprego para jovens que não concluíam a universidade.
Assim, os pais estavam menos preocupados com o sucesso educacional de seus filhos. Claro, os pais preferiam que seus filhos fossem bons alunos, mas eram menos obcecados com isso. No mundo de hoje, especialmente em sociedades muito competitivas, os pais colocam grande esforço e dinheiro para promover o sucesso educacional de seus filhos. Nos EUA, eles os empurram para atividades extracurriculares ou esportivas caras que aumentam as chances de seus filhos conseguirem admissão em boas universidades. Em países asiáticos, muitos enviam seus filhos para escolas preparatórias para se saírem bem nos exames.
No livro, vocês classificam os pais em três perfis: permissivos, autoritativos e autoritários. O que as pesquisas dizem sobre eles?
Nós usamos a classificação da pesquisa em psicologia do desenvolvimento infantil, especialmente o trabalho de Diana Baumrind na década de 1960. Fazemos alguns ajustes às ideias originais dela para encaixar suas três categorias em nossa teoria. Pais autoritários exigem obediência de seus filhos, exercem controle rígido, demandando ou proibindo certos tipos de comportamento. O estilo de parentalidade autoritário é frequentemente, mas nem sempre, associado a punições corporais. Mas nós não enfatizamos nenhum elemento de abuso que os psicólogos às vezes associam a esse estilo de parentalidade.
Pais autoritativos tentam influenciar o comportamento de seus filhos. Sua abordagem está associada a dialogar com eles e moldar suas opiniões e valores. Eles trabalham arduamente para motivá-los, mas essa abordagem pode às vezes sufocar a independência e a iniciativa espontânea das crianças.
Finalmente, pais permissivos deixam que as crianças façam suas próprias escolhas e cometam seus próprios erros. Eles se comportam de maneira não punitiva e tolerante em relação aos impulsos, desejos e ações da criança.
Quando tabulamos dados com relação a esses estilos parentais, associamos a parentalidade autoritária à visão de que as crianças devem obedecer aos pais. A autoritativa está associada ao trabalho árduo, ou, às vezes, a uma combinação de comportamento exigente e de apoio. E a permissiva, à visão de que as crianças devem ser autorizadas a fazer suas escolhas e que os pais devem estimular a imaginação e o senso de independência dos filhos.
Como os pais “helicóptero” são caracterizados nessa classificação?
Vemos os pais “helicóptero” como uma manifestação de um estilo de parentalidade autoritativo, com ênfase na proteção e interferência nas escolhas que as crianças fazem.
Há muito debate de que os pais “helicóptero” acabam criando crianças que não sabem lidar com frustrações ou não têm autonomia. Você então acredita que uma educação mais permissiva seria mais recomendada?
Em geral, no livro, tentamos nos abster de recomendações sobre boa parentalidade. Tentamos mais explicar e entender como os pais se comportam, em vez de ensinar aos pais como fazer um bom trabalho. Dito isso, acredito que a parentalidade “helicóptero” pode prejudicar a autonomia das crianças e limitar sua capacidade de lidar de forma independente com situações desafiadoras.
Como a maneira como os pais criam seus filhos influencia no desempenho acadêmico e profissional deles no futuro, de acordo com os dados?
Descobrimos que um estilo de parentalidade autoritativo tem um efeito positivo em resultados educacionais, como a conclusão da faculdade ou estudos de pós-graduação. Mas há diferença entre o sucesso privado dessa estratégia e a desejabilidade social da parentalidade intensiva generalizada ou hiperparentalidade, como às vezes é chamada. Ou seja, pode ser racional individualmente para os pais empurrar seus filhos para o sucesso, mas estaríamos melhor se todos os pais simultaneamente reduzissem a pressão e a proteção que exercem sobre seus filhos. Por exemplo, se os pais sabem que outros pais enviam seus filhos para escolas preparatórias, eles não têm escolha senão fazer o mesmo. Caso contrário, seus filhos ficarão em desvantagem e perderão a oportunidade de entrar em uma boa escola. No entanto, isso impõe enormes gastos aos pais e enorme estresse às famílias. Se todas as famílias pudessem decidir coletivamente não se engajar nessas atividades, todos estariam em melhor situação. As famílias seriam menos estressadas e mais felizes.
De que maneira você acredita que a tecnologia e a inteligência artificial podem influenciar a maneira como os pais criam seus filhos?
Períodos de rápida mudança tecnológica e transformações estruturais da economia tornam menos provável que a escolha profissional dos filhos permaneça parecida com a dos pais. Essa mudança reduz o apelo de um estilo de parentalidade autoritário, onde os pais podem apenas ensinar por meio do exemplo e monitoramento próximo. O advento da inteligência artificial pode conduzir a novas tendências. A revolução da TI ontem e a revolução da IA nos dias atuais e futuros têm efeitos dramáticos nos mercados de trabalho. Antes da revolução da TI, que começou na década de 1980, havia muitos bons empregos operários. Então, a TI e a automação fizeram com que essas ocupações declinassem. A questão agora é: quais profissões serão assumidas pela IA?
Ainda estamos aprendendo, mas parece que muitas ocupações de alta remuneração que exigem habilidades técnicas serão realizadas pela IA, que pode ser menos apta a realizar tarefas que exigem imaginação e criatividade. Habilidades abstratas e criativas podem estar mais protegidas do risco de automação. Talvez isso possa fazer os pais descobrirem os benefícios da imaginação e da independência que a hiperparentalidade tende a sufocar hoje. Torna-se importante transmitir às crianças o desejo de aprender, em vez do conteúdo em si. Então, podemos ver um boom na demanda por essas habilidades. E os pais podem perceber que sufocar a independência de seus filhos não está ajudando-os a serem criativos. Isso pode exigir que as crianças sigam suas vocações naturais, por exemplo, em vez de se tornarem todos advogados ou engenheiros.
Quanto do que as crianças se tornarão pode ser moldado pela criação dos pais e quanto é genético?
Embora tanto os fatores genéticos quanto culturais importem, acredito que a criação é muito importante, em última análise, a mais importante. Devo admitir aqui que o debate interminável sobre natureza versus criação não alcançou um consenso unânime, além de que ambos os fatores importam. No entanto, ao documentar que mudanças nos incentivos afetam a maneira como os pais se comportam, o que, por sua vez, afeta os resultados das crianças, fornecemos um argumento poderoso contra a visão de que tudo é determinado pelos genes. Embora uma minoria de estudiosos discorde, a visão majoritária de hoje é que fatores ambientais explicam a maior parte da variação nos resultados.
Ao ler seu livro, os pais podem pensar: ‘Estou fazendo a coisa certa com meus filhos? Devo ser mais permissivo ou mais autoritário?’ O que você responderia a eles com base nos dados?
Mais uma vez, assumimos a visão de que os pais, dentro de suas próprias limitações cognitivas, tendem a fazer o que é melhor para seus filhos. Não acho que os guias parentais façam muito além de reforçar as opiniões que os pais já tinham. Dito isso, acredito que muitos pais hoje tendem a subestimar a virtude da independência em seus filhos. Vejo os jovens muitas vezes exigirem proteção contra aspectos indesejáveis da vida social. E sabemos dos crescentes problemas de saúde mental. Acho que não deixar as crianças enfrentarem desafios só piora as coisas.
Vocês têm dados sobre o Brasil que indiquem o perfil da parentalidade no País?
De acordo com nossa classificação, com base em dados da World Value Survey de 2018, 48% dos pais brasileiros são autoritários, 40% são autoritativos e 12% são permissivos. Dados mais antigos, de 2006, indicavam 60% de autoritários, 31% de autoritativos e 9% de permissivos. A parcela de pais autoritários é alta no Brasil em relação aos países mais ricos da OCDE. Isso está em linha com dois fatores: a parcela de pais autoritários é maior em países em desenvolvimento e também é maior em países católicos.
Geralmente, pais para os quais a religião é muito importante na vida, independentemente de qual religião, tendem a ser mais autoritários em todos os países. Além disso, a parentalidade autoritária não está muito associada à desigualdade, a relação é levemente crescente, ou seja, países mais desiguais são um pouco mais autoritários. Pessoas para as quais a religião é um fator importante tendem a ter uma crença forte sobre o que é certo ou errado, e tendem a entender isso como algo invariável no tempo, porque rejeitam qualquer tipo de relativismo. Isso faz com que haja menos mudanças nos estilos parentais ao longo do tempo. Embora isso seja verdade, também vale a pena notar que em muitos países há um papel decrescente da religião na vida das pessoas. Certamente foi o caso em países europeus como Irlanda, Espanha e Itália, e a situação pode estar mudando lentamente ao longo dos anos.