Há duas qualidades recorrentes àqueles que se dedicam a gerar um impacto positivo ao mundo: acreditar firmemente que se pode alcançar e ser tudo aquilo que se desejam e manter ativa a disciplina frente a qualquer desafio. A disciplina é a ferramenta primordial que transforma o que parece muito difícil e complexo, em “possível”. É com esta mentalidade que tenho escrito a minha história.
Quando olho para trás e faço um balanço, o lugar onde nasci, o entorno em que cresci e as oportunidades que tive, identifico quais foram os meus privilégios, ao mesmo tempo em que reconheço os diferentes percalços que poderiam ter comprometido o caminho que escolhi. Frente a todos os obstáculos que surgiram, eu segui a jornada com constância até atingir o meu objetivo. Por muito tempo, fui a única a acreditar que aquela menina, que aos sete anos ajudava na roça e que teve uma vida com bastante escassez em alguns momentos, viajaria pelo mundo e lideraria pessoas. No entanto, estou aqui, em um exercício de retrospectiva, para dividir algumas de minhas memórias e aprendizados. Parto, então, desta recomendação genuína: lembre-se de que os únicos limites que não podemos superar são os que nós infringimos a nós mesmos, em nossa própria cabeça – a partir da visão que temos de nós. Uma visão que é construída e influenciada socialmente. Quanto mais cientes formos deste processo, mais aptos estaremos a questionar se estamos ocupando o espaço que queremos e que merecemos ou o espaço que o ambiente externo quer determinar para nós. Questionar e desafiar sempre. As fronteiras estão na cabeça de cada um.
Nasci em Borborema, interior de São Paulo, município hoje com pouco mais de 16 mil habitantes, em uma família pequena. Éramos apenas minha irmã mais nova, meu pai, minha mãe e eu; e contávamos com um núcleo familiar estendido aos meus vizinhos, que a vida toda chamei de tios: meu tio, minha tia, além do único filho deles.
Dos meus pais, eu herdei a curiosidade, a determinação e a disposição para todas as “lutas diárias”; também herdei, da minha mãe, uma fascinação pela madrugada, por este sentimento de início que cada começo de dia traz. Da minha irmã e do meu vizinho, um “irmão do coração”, o sentimento de cumplicidade e pertencimento. Com meus tios aprendi sobre o amor incondicional, a amorosidade e o cuidado com o outro. Por fim, do contexto desta cidade pequena, tenho impregnado em quem sou o sentimento de comunidade; essa existência conectada entre tudo e todos. O senso de comunidade vem da minha raiz, é parte dos meus valores, levei e levo por todos os caminhos e pulsa em mim, até hoje, com a mesma força.
Vida universitária e a descoberta do ser social
Quando fiz 15 anos, os meus pais decidiram que deveria me mudar para continuar os estudos, visto que a cidade onde morávamos ainda não tinha uma escola que oferecesse o ensino médio privado, considerado “de qualidade”. O destino? Um colégio de freiras chamado Santa Marcelina, localizado em Botucatu (SP). Lá fiquei como interna para fazer o primeiro e o segundo colegial. A princípio foi um choque, porque saí de uma rotina típica de uma cidade pequena, onde andava descalça, tinha muitos amigos, conhecia todo mundo e estava sempre em movimento, para viver em uma cidade maior, onde todos eram estranhos e os costumes eram diferentes.
No final de dois anos, nova mudança: migrei para Ribeirão Preto para cursar o terceiro e último ano do Ensino Médio. Ao final desta etapa, aos 17 anos, em 1990, ingressei na Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara. Na época tinha 17 anos e optei pelo curso de Farmácia. Eu tenho essa conexão com a área da saúde desde pequena, tenho uma lembrança nítida do farmacêutico como a pessoa que estava sempre disponível para cuidar de todos, que tinha sempre uma solução, um “elixir” que podia melhorar tudo, de dor de barriga a dor de tristeza. Eu não podia encontrar maior motivação. Sempre acreditei que todos temos que partir de um lugar de bem-estar e gosto muito da definição da Organização Mundial da Saúde (OMS), que afirma que a saúde é a união do bem-estar físico, mental e social.
Foi nos corredores da universidade que me descobri como ser “social”, parte de uma sociedade plástica e possível de ser moldada. Ali, eu me lapidaria como indivíduo, como cidadã, como alguém que poderia colaborar para o bem-estar para além do indivíduo e, também, para além de apenas uma comunidade, como Borborema. A UNESP fortaleceu em mim uma inquietude em prol da equidade – o desejo genuíno de que todos tivessem acesso às mesmas oportunidades. Durante o período acadêmico, eu me envolvi com o movimento estudantil, comecei a ler sobre política, realizei mobilizações e fui representante dos alunos junto ao conselho diretor da universidade para discutir e defender a moradia estudantil, que já naquela época era uma barreira significativa para a retenção de alunos em situação de vulnerabilidade social. Também foi neste momento tão singular que me inteirei das questões feministas e conheci pessoas e ideias que eram novas para mim. Meus amigos, o entorno, minha nova comunidade. Uma fase crucial que me impregnou de muito do que sou hoje.
Terminando a faculdade nada me encantava e desafiava mais do que a ilusão e a magia de viver em São Paulo, onde tudo me parecia exacerbado e as possibilidades infinitas. Eu me mudei em dezembro de 1995 para um estágio na Danone, morei na Vila Prudente, na casa de uma amiga, sendo acolhida e cuidada por sua família.
Maternidade e vida profissional
Este capítulo da minha vida vem com muitas histórias conectadas e muitos desafios. Em 1998, nasceram meus filhos gêmeos Felipe e Olívia, uma maternidade não planejada, mas muito desejada aos 26 anos. Uma relação que não perdurou me fez assumir o papel de “mãe solteira” em um momento em que estava, também, sem vínculo de trabalho fixo e estável. Se estes percalços por ora me tiraram o sono, hoje, são fruto de muito orgulho, de uma época da qual me recordo com saudades e carinho.
A oportunidade de trabalhar na Roche surgiu quando os bebês estavam com um ano e seis meses. Eu fui para a entrevista disposta a dar tudo de mim, afinal era uma oportunidade singular e que eu desejava com todo meu coração. Eu lembro de uma pergunta específica que o entrevistador me fez quando disse a ele que tinha dois filhos e cuidava deles sozinha: “Mas como vai trabalhar se tem duas crianças e não tem ninguém que te ajude, visto que sua família não está aqui em São Paulo?”. Essa foi a primeira vez que eu entendi que teria que justificar o fato de ser mulher, de ser mãe, de ser trabalhadora, e independente – justificar ser quem eu sou. Consegui a vaga e comecei no dia 19 de janeiro de 2000, feliz, entusiasmada, imparável, como Representante de Vendas na Divisão de Diabetes Care da Roche.
Do meu primeiro dia tenho uma memória viva, como se fosse hoje: lembro do cheiro adocicado da fábrica ao lado, dos jardins, do crachá, do receio de fazer alguma coisa errada e ser dispensada de uma hora para outra (experimentei, então, a síndrome do impostor). A estas lembranças, soma-se o pavor, um sentimento quase físico, que senti ao sair cedo de casa e deixar meus filhos com uma senhora que havia acabado de contratar, que não conhecia ou tinha qualquer referência – experimentei, desta vez, a rede de apoio que nós mulheres criamos para sustentarmos umas às outras. Naquela época não era fácil ter acesso, como hoje, a referências e indicações, e tive que escolher uma pessoa a toque de caixa, sem mais informações de quem ela era. Levei comigo, por mais de um mês, não só o medo de ser demitida, mas também o de chegar em casa e não encontrar as crianças. Por sorte, por causalidade, ou por qualquer razão que eu desconheço, ela é uma pessoa maravilhosa, foi o melhor suporte para nós três e nos ajudamos, uma a outra, desde então.
Todos os lugares são nossos!
Conciliar maternidade, vida pessoal e trabalho sempre foi um desafio para mim. Eu tive gêmeos, depois fiquei em uma relação por dez anos. Deste relacionamento, engravidei do Miguel, que hoje tem 19 anos. Nunca quis abrir mão da carreira, mas, em vários momentos desse percurso, nas diferentes fases dos meus filhos, me questionei: será esse o caminho? Existem outras formas? Eles estariam melhores se eu fizesse outras escolhas? Eu seria feliz? Sou egoísta?
Na verdade, equilibrar todas estas vertentes segue sendo o desafio de todos os dias. Para mim, o trabalho é um lugar de exercício individual, de luta, de voz, de exposição e espaço. Eu creio em uma relação muito positiva com o trabalho e por isso não compro jamais a ideia de que não podemos conciliar os papéis; são armadilhas, verdades criadas e arquétipos que somente servem para nos limitar – para colocar a mulher “no lugar dela” – eu acredito que todos os lugares são nossos.
Quando iniciei na Roche, há 24 anos, integrei uma equipe onde todos eram homens. Então, tinha comigo que deveria produzir e trabalhar igual ou mais que eles para que ninguém lembrasse que tinha dois filhos em casa. Uma vez, por exemplo, a Olívia teve broncopneumonia e precisou ficar internada por dez dias. Eu então pedi para o hospital internar nós três: ela, eu e o Felipe, gêmeo dela. E fiquei trabalhando dali, pelo celular, sem contar para ninguém o que estava acontecendo, porque tinha medo que este tipo de situação mostrasse que eu era vulnerável e não valia tanto quanto os meus companheiros, homens.
Hoje, depois de todo caminho percorrido, após esta longa jornada, ressalto aos meus colegas de trabalho, sobretudo às mulheres: tenha sempre tranquilidade e confiança na sua capacidade criativa para o trabalho; acredite em você e no que pode entregar; equilibre a vida em todos os seus aspectos, a roda da vida gira harmônica quando todos os seus aros estão devidamente balanceados.
Seguimos, como mulheres, cumprindo mandatos
Anseio pelo dia em que sejamos realmente capazes de ver, sem vieses, e compreender a situação das mulheres na nossa sociedade. Tenho a sensação de que muitas vezes, quando assumimos posições de liderança, nós mesmas, mulheres, nos esquecemos do que vivemos, somos intolerantes e não levamos em conta todo o esforço para que uma mulher esteja ali, na nossa frente, nesta posição de trabalho. Que sejamos vigilantes para não nos perdermos de nós mesmas pelo caminho e para que possamos dar voz e exemplos positivos às questões que seguem sendo injustas.
Para exemplificar, trago minha inquietação com o tema da Licença Maternidade. O que foi concebido como um benefício, hoje se torna um selo que reduz o valor, que estigmatiza e que exclui a responsabilidade e o valor do vínculo paterno. Para este tema sugiro uma releitura onde qualquer criança ao nascer tenha a oportunidade da convivência “parental” onde ambos, pai e mãe, tenham o tempo disponível para dividir com o bebê e dessa forma sejam construídos vínculos mais saudáveis, responsabilidade compartilhada e papéis mais claros. Insisto que tempo não compartilhado do pai jamais poderá ser compensado pelo tempo extra da mãe, e vice-versa.
Seguimos, como mulheres, cumprindo mandatos. Outro exemplo é a ideia social de que a mulher é a que tem o “dom” do cuidado; com isso temos sobre os ombros o peso da casa, do parceiro (a), dos filhos, dos pais, dos vizinhos, dos colegas. Assumimos um lugar que nos foi imposto e contado como verdade. Temos que desconstruir estes arquétipos e ser livres para sermos quem sentimos que somos. Nada mais.
O ser humano em expansão
Podemos ser experts em temas; podemos aprender e ser fluentes em idiomas; com tempo aprendemos técnicas e teorias em conhecimentos diversos, mas o que nos diferencia, de verdade, são nossas atitudes; isso é o que nos torna únicos. Quando penso em quem eu gostaria de ter por perto, de ser parte do mesmo time, penso em pessoas curiosas, atentas, questionadoras, alegres, entusiasmadas, gente com “chama acesa” e com aquela vontade que contagia os demais. Gosto muito de um conceito que recém descobri em um livro – ANTIFRÁGIL (Nassim Nicholas Taleb) – pessoas que, ao enfrentar desafios, percalços, não apenas resistem, não são resilientes e saem intactas, saem melhores, saem transformadas em outra versão de si mesmas, saem “expandidas”. Também me chama a atenção os otimistas, não referindo-me aos que acham que tudo é cor de rosa, mas sim aos que buscam olhar para o futuro, têm curiosidade para aprender, e saem atrás de alternativas e soluções para a resolução dos problemas. As pessoas que são capazes de falar de frente, de discordar e dizer o que pensam também trazem consigo características primordiais. A partir daí, todo o resto se constrói.
Diálogos transparentes como motor de carreira
No desenvolvimento da carreira, muitas vezes buscamos e necessitamos o olhar externo, o olhar do outro, mas temos que estar preparados e abertos para escutar o que nos incomoda de verdade porque só daí vem a verdadeira evolução. Eu tive a sorte de ter uma mentora na Roche que foi sempre muito pragmática e muito direta, por vezes muito dura; dizia de forma objetiva o que eu precisava ouvir e isso foi um fator crítico e um ponto de inflexão. O legado dessa experiência, para mim, é o aprendizado de que temos de ser capazes de falar o que acreditamos ser a verdade; e quando encontramos pessoas abertas para considerar estas perspectivas, juntos, evoluímos – entramos em expansão.
Mantenha-se fiel à sua essência
Minha carreira transitou por muitos espaços dominados por homens e, como não podia deixar de ser, muitas situações me desafiaram. Desde situações corriqueiras como clientes que se recusaram a negociar comigo por ser mulher, até códigos de conduta cultural de outros lugares do mundo, como durante minha trajetória na Suíça em uma posição global. Aprendi que não controlo a situação, mas que, sim, posso decidir e responder de forma consciente a tudo isso, criando assim outro contexto, alterando o status quo.
Em minhas duas últimas posições de General Manager assumi cadeiras que foram sempre ocupadas por homens. O que por um lado traz toda uma alegria e um orgulho, por outro traz o peso de um arquétipo masculino – a posição não vem livre de todos os modelos que a ocuparam. E aí vem o maior desafio, encontrar o meu estilo, a minha forma, sem me deixar levar pela tentação de preencher o lugar que estes modelos deixaram.
O maior legado que posso deixar é o meu estilo próprio. É não tentar imitar os modelos e sim mostrar que todos os estilos, modelos e formas podem ter espaço e sucesso, se bem executados. Manter-me fiel a mim mesma é o maior desafio, constante e diário.
Sejamos pessoas possíveis!
Insisto em dizer que não existem heróis, ou que os heróis são nada mais que pessoas possíveis. Sejamos, então, pessoas “possíveis” – que a cada dia constroem seu mundo e se constroem nele. Cada madrugada representa uma nova oportunidade e, ao final do dia, tudo é construção. Por exemplo, você não vai aprender um idioma de um dia para o outro, mas, se a cada dia, você aprender uma palavra, ao final de um ano vai ter 365 palavras de um novo idioma. O hábito da leitura pode parecer difícil, mas, uma folha por dia te permite terminar um livro de 700 páginas em um ano.
O nosso potencial é infinito e as ferramentas são a disciplina, a constância e a crença inabalável de que pertencemos a todos os lugares que desejarmos.
Fonte: Exame – Histórias de Sucesso.