O PERIGO DA NORMALIZAÇÃO

Muitos de nós já tivemos a experiência de entrar num ambiente fechado e sentir um odor desagradável, mas que, passados alguns minutos, já não provocava o mesmo incômodo inicial. Lembra da experiência de entrar num bar cheio de fumantes?

Se você saísse e entrasse novamente alguns minutos depois, o incômodo era menor do que na primeira vez. Se repetisse esse movimento de sair e retornar, o incômodo tornar-se-ia cada vez menor.

Isso se dá pelo fato de que o nosso cérebro está atento para situações novas. Cada vez que a situação deixa de ser novidade, atrai menos atenção. É o chamado processo de habituação.

Sejam coisas ruins ou boas, na medida que o nosso cérebro se habitua, o choque, o impacto passa a ser cada vez menor.  

Este princípio se aplica em diversos aspectos, desde consumo de bens materiais até a questões morais, como, por exemplo, mentir.

Numa pessoa normal, quando ela mente, a amígdala (região do cérebro responsável pela regulação das emoções) dispara um alerta, o que faz nos sentirmos desconfortáveis e incomodados.

Atualmente, já se sabe que a amígdala também está sujeita ao processo de habituação (habituação emocional). Pesquisas comprovam que, à medida que as pessoas mentem sistematicamente, a reação da sua amígdala vai diminuindo até não mais emitir o alerta, deixando de gerar desconforto.

Chega-se ao ponto da pessoa perder a consciência da sua atuação amoral, de tal modo que as mentiras acabam gerando mais mentiras. Lembra aquele fornecedor que nunca cumpre prazo?

Impressionante é que também terminamos nos habituando à mentira dos outros. No primeiro momento, ela causa estranheza, espanto,  mas na medida em que vai sendo repetida sistematicamente, deixando de ser novidade, o processamento neural se reduz, e o espanto vai cedendo lugar à familiaridade fazendo com que paremos de nos incomodar. O perigo do efeito da familiaridade é que associamos o que é familiar ao que é certo.  

Mas será que todas as mentiras produzem o mesmo efeito?

Para uma boa convivência, é preciso compreender que algumas mentiras são socialmente aceitáveis. O excesso de franqueza pode ser percebido como indelicado, ou até mesmo rude. Diferentemente daquela  que objetiva benefícios pessoais, a mentira abnegada, que busca “beneficiar” a outra pessoa, não é percebida como uma má  prática, não gerando alerta significativo da amígdala, e, principalmente, não impulsionando outras mentiras.

No mundo atual, onde dominam as narrativas que procuram construir suas verdades através de repetições exaustivas, como distinguir as mentiras, seja nos currículos turbinados, promessas de alta performance ou soluções práticas e simples para grandes problemas?

Diz a sabedoria popular que você não deve ir ao mercado quando está com fome. Quando estamos em busca de uma solução para nossos problemas, é o momento em que o viés de confirmação funciona com mais força. Nessa hora, precisamos de mais concentração e foco para mantermos a objetividade e resistirmos à tentação das definições rápidas. Não há perda de tempo maior do que tomar uma decisão errada e ter de corrigi-la.  

Considerando que temos tendência a acreditar no que é dito (chamado de viés da verdade), a partir do momento que sabemos que a prática molda a reação da amígdala cerebral, só posso esperar a mesma atitude moral das pessoas que que têm o mesmo comportamento que eu, analisando suas ações e não as suas palavras. É um exercício que requer ativação da nossa parte racional e menos da parte emocional.

Lembre-se  que “o diabo mora nos detalhes”. Quando algo soar contraditório ou incongruente, acenda os sinais de alerta, investigue, não pague para ver. Por exemplo, ao ler um currículo, verifique se o que está descrito é coerente com a formação do candidato, com a cultura da empresa onde atuou e assim por diante. Investigue quando o candidato não cita como referência seus últimos líderes. Não se deixe empolgar por cartas de referência, pois, afinal ninguém as pede para um desafeto.

Mas não é só com os outros que devemos nos preocupar. Como eu me protejo para não ultrapassar o limite da moralidade?  Excetuando-se as mentiras abnegadas, temos de atuar com tolerância zero. É a maneira mais eficaz de evitarmos que a habituação emocional nos domine e a mentira seja normalizada.

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