NINGUÉM É, NÓS ESTAMOS!

Lembro quando o Ministro da Cultura, Eduardo Portella, pediu demissão do governo do então presidente João Batista Figueiredo e disse uma frase que me marcou profundamente: “Não sou ministro; estou ministro”.

Confesso que demorei um tempo para capturar toda dimensão da frase, mas ela nunca mais saiu da minha cabeça.

O mundo corporativo tem seus encantos, mas também esconde algumas armadilhas. Por exemplo, vamos assumindo uma nova identidade. Quando ingressamos na empresa, somos João. Aos poucos vamos nos transformando em João da contabilidade. Ascendendo, viramos João, supervisor da contabilidade. Vamos incorporando o cargo à nossa identidade. Quanto mais alta a posição, mais invertemos a ordem e o nome vai para o final e o cargo ganha destaque. Quando perguntado quem gostaria de falar, a resposta é : CEO da empresa XY, senhor João, ou sequer o nome é mencionado, só o título.

Na vida, temos diferentes papéis: filho, pai, amigo, funcionário, marido e muitos outros, que na maior parte do tempo, se sobrepõem. Mas há uma tendência de que quanto mais alta nossa posição hierárquica na empresa, mais ela acabe influenciando, ou  até moldando, nosso padrão de comportamento nos demais papéis. Há grande chance de não se conseguir separar o título executivo que se ocupa do papel que lhe cabe naquele momento. Não sou só um pai, sou CEO que é pai.

Na frase, popularizada pelo Benjamim Franklin, de que na vida há duas certezas, a morte e os impostos, podemos acrescentar mais uma: toda carreira executiva tem prazo de validade!

Mas quem se preocupa com isso?

A embriaguez do sucesso muitas vezes não nos permite planejar a terceira etapa da nossa vida, aquela que começa quando perdemos o nosso sobrenome corporativo.

Como ninguém gosta de pensar em coisas que desagradam, optam por não pensar, como se isso resolvesse o problema. Preferimos imaginar que tudo continuará igual depois da aposentadoria. Ledo engano!

Confundimos e não percebemos que os convites para almoços e recepções são dirigidas para pessoa jurídica. Às vezes, mesmo sabendo disso, queremos nos convencer que, dada a nossa relevância, os convites continuarão. Afinal foram tantos anos de relacionamento. Com o tempo, inevitavelmente os convites irão se escasseando, até pararem.

E quando isso acontece, perceberemos que deveríamos ter nos preparado antes para os seguintes aspectos:

                Financeiro: ter feito um planejamento financeiro que permita não só uma qualidade de vida sem downgrade, mas também a liberdade e tranquilidade para escolher o que e quando fazer. Para aqueles que investem em previdência privada, recomendo verificar se o montante aplicado será suficiente para proporcionar a qualidade de vida desejada.

                Emocional: ter desenvolvido outros interesses e atividades que possam suprir a perda da identidade corporativa e proporcionar uma agenda positiva. Sim, existe vida fora do mundo corporativo.

                Afetivo: na correria do dia a dia, acabávamos sacrificando a qualidade dos nossos relacionamentos. Não deixe o vaso trincar ou acumular mágoas, pois a transição de um relacionamento em tempo parcial para nova realidade 24 por 7 por 365 não é simples. Não é a toa que os divórcios grisalhos estão em alta.

                Amizades: não deixe de cultivar amizades fora do circuito empresarial, pois serão elas que permanecerão independentemente do seu status ou sobrenome corporativo. Simplesmente amizade, sem interesse.

                Saúde: nenhum trabalho vale o sacrifício da sua saúde física e emocional. Nunca deixe para amanhã os cuidados com sua saúde, pois infelizmente só tendemos a valorizá-la quando a perdemos.

Como disse o falecido ex ministro, nós não somos, todos estamos. Por mais reluzente que seja nosso atual posição, lembre-se, ela é passageira, é só mais uma etapa da nossa vida. Não perca o foco do que é essencial e duradouro. Sempre é tempo para começar a pavimentar o caminho para terceira etapa da nossa vida.

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