CONSTRUINDO O NOSSO INIMIGO !

Após 80 anos de paz, a Europa se vê perante um cenário de incertezas sob a administração Trump II, seja no campo econômico ou no militar. Os velhos paradigmas e alianças se veem sob ataque. Guerra tarifária de um lado e, do outro, os velhos parceiros não são considerados nas negociações de paz envolvendo o fim da guerra na Ucrânia. Aliás, para espanto de todos, a Ucrânia foi acusada pelo presidente americano de ter iniciado o conflito armado.

Podemos pensar que somos abençoados, pois estamos geograficamente distantes da zona de conflito e acima de tudo, não temos inclinação para guerras, e somos naturalmente um povo pacífico. Ledo engano, os inimigos podem ser externos ou internos a um país ou a uma empresa, por exemplo.

Umberto Eco, filósofo e escritor italiano, na sua obra “Construindo um Inimigo” (de onde tirei a inspiração para o título desta coluna), nos fala que a eleição de um inimigo faz parte da criação da nossa identidade. É através da negação do outro que nos definimos. Ele é feio, grotesco, ignorante, cheira mal. Ele é tudo que não somos. O processo é tão sutil que mal nos damos conta.

Não necessariamente o inimigo é um sujeito mau, basta que não comungue dos mesmos valores. Sejam eles religiosos, políticos ou até preferências esportivas. Quando torcedores de um determinado clube de futebol armam uma emboscada contra torcedores de outro time, está mais que claro que já não estamos falando de uma mera paixão.

Eleger um inimigo também funciona como um elemento aglutinador. Diante de uma ameaça imaginária ou real, conseguimos aglutinar pessoas em defesa de nossos interesses. Essa estratégia tem sido utilizado com frequência ao longo da história. Quem não se lembra da guerra das Malvinas?

Existem dois conceitos, cujos nomes são parecidos, mas são totalmente distintos. Um é o processo racional, o uso da razão, e o outro é a racionalização.

Enquanto o primeiro busca estabelecer as premissas, hipóteses e chegar numa conclusão lógica, o segundo, a racionalização, faz o caminho inverso. Definido o que quero provar, busco elementos que justifiquem a minha posição, pouco importando se foi fruto de um processo lógico, coerente e analítico. Basta que tenha uma narrativa que valide a minha crença, o meu desejo.

Nesses processos, se um grupo tem aversão a determinadas raças, gêneros, ou pessoas oriundas de determinadas regiões, ele busca imagens que reforcem, validem o seu preconceito inicial. Comem coisas estranhas, o som das conversas é irritante, seus corpos exalam cheiros fortes, etc. Definitivamente são diferentes, é preciso estar atento, pois os desconhecidos não são previsíveis, logo não são confiáveis.

Tudo que fazemos é buscar elementos que reforçam a nossa crença e nos proporcionam paz de espírito, ainda que seja momentâneo. Não suportamos pensar que estamos sendo injustos. Precisamos de uma justificativa e aí que entra o mecanismo de racionalização limpando a nossa barra.

Em determinadas situações, confrontamos com dois tipos de oposição: a silenciosa e a declarada. Muitas vezes dedicamos mais tempo e irritação lidando com o inimigo declarado e negligenciamos a oposição silenciosa, justamente porque é silenciosa. É o caso do cliente que nos abandona sem reclamar, é o funcionário que vai para concorrência sem nunca antes ter pedido aumento, é o parceiro(a) que abandona a relação sem nunca ter feito uma DR.

É muito mais fácil lidar com o oponente declarado do que com o silencioso, mas as derrotas maiores virão desses, pois nos pegam de surpresa. Queremos acreditar que “no news, good news”, mas nem sempre isso é verdade.

É fato que a maioria de nós não gosta de lidar com objeções, deseja unanimidade, e nos esquecemos que toda unanimidade é burra.

Precisamos aprender a ouvir o que não é dito, a ler o que não está escrito e, assim, escaparmos do mundo da mera aparência e capturarmos a essência da natureza e relações humanas.

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