Quem trabalha com pesquisa clínica, no segmento de uma CRO (Clinical Research Organization) como eu não tem contato direto com o paciente. Deixar a enfermagem assistencial e atuar nesse campo foi um período complicado para mim, pois sentia falta desse relacionamento. Ao mesmo tempo, foi meu turning point, uma vez que percebi que poderia continuar no âmbito da saúde, que é a área que mais amo e que conseguiria contribuir de uma forma tão significativa quanto antes (por meio de desenvolvimento de novos medicamentos), mas aliando a qualidade de vida ao equilíbrio familiar que eu buscava.
Tenho 58 anos. Nasci e fui criada aqui em São Paulo. Meu pai é da República Tcheca e veio para o Brasil fugindo da guerra e do nazismo, mais ou menos com nove anos. Chegou aqui, praticamente, só com a roupa do corpo. Fugiu para a Itália, França e depois veio para o Brasil. O começo dele aqui foi bem difícil; começou como office-boy até conseguir se graduar no Mackenzie e se tornar engenheiro civil. Conheceu minha mãe, que é carioca, no Rio de Janeiro. A família dela também veio da Europa (Polônia), porém antes da Segunda Guerra. Então, tenho essa herança cultural, esse lado dos refugiados. Também tenho um irmão dois anos mais novo.
O início em enfermagem e o choque com a rotina hospitalar
Na minha infância, minha família possuía recursos, e estudei em um colégio americano (Graded School) de São Paulo. Apesar da situação financeira confortável, sempre havia aquela diretiva dura. Precisei trabalhar ainda adolescente em lojas na época de Natal e fui bandeirante por 8 anos, quando aprendi a trabalhar em equipe e a respeitar o próximo. Cheguei a vender biscoitos Mirabel de uniforme no farol para arrecadar dinheiro para diversas instituições beneficentes. Também aprendemos a viver com poucos recursos durante os acampamentos, o que foi um grande aprendizado. Nessa época, tínhamos várias especialidades, e a minha preferida era a de primeiros socorros. Gostei tanto que hoje vejo que essa experiência certamente foi um dos fatores que me levou à enfermagem.
Durante minha adolescência, recebi a influência da religião judaica, que tem costumes como festas importantes nas quais vamos percebendo a importância do núcleo familiar, dos valores éticos e morais que estão no meu DNA até hoje. No meu caso, esse era um sentimento forte tendo uma família muito pequena, porque meu pai, filho único, havia perdido todos os parentes na guerra e nos campos de concentração.
Graduei-me na Universidade de São Paulo (USP). A faculdade era integral, e não havia a possibilidade de trabalhar, pois as aulas iam das 7h às 18h. No terceiro ano, fui morar sozinha, levando apenas minhas roupas. Lembrei de quando meu pai chegou ao Brasil, fugindo da guerra, só com a roupa do corpo.
Desde o início da graduação, eu realmente me identifiquei com a enfermagem. Claro que, no primeiro ano, existe o impacto da aula de anatomia, que utiliza corpos que são reais; não é tecnologia. Dediquei-me profundamente ao curso. A própria faculdade me colocou no Hospital das Clínicas (HC) em estágios que já fazem parte do currículo, mas, chegando ao terceiro, quarto ano, foi preciso buscar algo fora. Fui para o Instituto Médico Legal (IML), uma experiência horrível, pois tinha que lidar com todos aqueles procedimentos lá dentro e depois ver a família do lado de fora. Foi pavoroso, mas precisava daquele choque, assim como novas experiências em outras áreas também são necessárias.
Uma das dificuldades é que o HC não tinha os materiais de que precisávamos. Muitos pacientes chegavam em estado crítico, sem família, sem ninguém, situação que gerava ainda mais estresse tanto para eles quanto para os profissionais de saúde. No terceiro ano, realizei estágios externos. Na Beneficência Portuguesa, pedi para ficar na UTI, pois queria muito ter essa experiência, que era uma vivência necessária. Em Bauru, no interior paulista, trabalhei em um complexo de hanseníase que também foi bem impactante na minha carreira como enfermeira.
A jornada profissional até a Thermo Fisher Scientific
Posso afirmar que grande parte do sucesso da minha carreira se deve ao meu nível de inglês, que sempre foi fluente devido ao colégio americano. O fato de não existirem, na época, muitas enfermeiras com tal nível de inglês e com as experiências que adquiri ao longo dos anos de faculdade fez com que surgissem boas oportunidades de trabalho. Assim que me formei, fui trabalhar no Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE), o que foi essencial, porque novamente vi na enfermagem o que eu realmente gostava e queria exercer. Aprendi muito com os auxiliares de enfermagem em um andar de clínica geral e pós-cirúrgico. Aconteciam paradas cardíacas em pacientes no andar quase todos os dias. Era um ritmo bem puxado, com pacientes de pós-operatório complicados. Fiquei quase três anos no HIAE e acabei solicitando meu desligamento, pois estava recém-casada e os horários e as folgas não eram compatíveis com aquela fase da minha vida. Foi o início de uma transição de carreira e de uma busca por um pouco mais de qualidade de vida.
Tive alguns trabalhos interessantes, diferentes, por exemplo na área de odontologia, como instrumentadora para implantes dentários, e como empresária, sócia-diretora de uma empresa dental familiar. Isso foi numa época de inflação diária em que os preços mudavam constantemente. Foi um ótimo aprendizado administrar um pequeno negócio, atuando nas áreas administrativa, RH, finanças e operacional. Fiz um pouco de tudo. Porém, ali notei que não me realizava como empresária. Sempre gostei muito de processos estabelecidos e, aos poucos, percebi que gostava de trabalhar para uma empresa de referência de grande porte com seus processos já definidos e atuação global.
Justamente nessa época apareceu uma oportunidade na indústria farmacêutica (MSD) na área de pesquisa clínica, segmento no qual atuo há 30 anos. Comecei como monitora de pesquisa clínica em estudos de HIV e de lá fui crescendo tanto em áreas diferentes quanto em áreas terapêuticas diversas. Assumi novos desafios e cargos na área de operações clínicas, treinamento, melhoria de processos e qualidade, e trabalhei com estudos de oncologia, infectologia, cardiologia, reumatologia entre outros. O fato de ser enfermeira e conhecer os hospitais “por dentro” facilitou muito meu trabalho, pois conhecia na prática os sinais, os sintomas e o prontuário médico de um paciente, itens que são fundamentais para a coleta de dados em uma pesquisa clínica.
Nesse período, ajudei na criação de uma organização não governamental chamada Sociedade Brasileira de Enfermeiros na Pesquisa Clínica (SOBEPEC). Essa entidade tinha o intuito de trazer mais enfermeiros para o ramo da pesquisa clínica, já que a maioria dos profissionais atuantes naquela época eram farmacêuticos.
Nunca desenhei minha carreira, nunca planejei “eu quero chegar aqui, eu quero chegar lá”. Sendo curiosa e aceitando novos desafios, busquei áreas diferentes. Aumentando meu conhecimento, pude enxergar novas possibilidades. Sendo proativa e me voluntariando, “por que não fazer isso, por que não fazer aquilo?”, criei oportunidades. De lá, fui para onde trabalho hoje, a Pharmaceutical Product Development (PPD), organização global voltada para o suporte à pesquisa clínica. A PPD foi incorporada há dois anos por uma corporação gigante, a Thermo Fisher Scientific. Continuei meu crescimento dentro da pesquisa clínica, ainda muito mais focada. Fui contratada para a área de qualidade. Comecei na PPD como responsável pela América Latina e, um ano depois, assumi a unidade da Ásia. Mais tarde, ajudei a cobrir os Estados Unidos, o que resultou em posições ainda mais globais e importantes.
Desde meu ingresso como executiva no dia a dia de uma grande corporação, trabalho de 10 a 12 horas diárias, mas o final de semana é livre, o que era diferente na época do hospital, pois quase não existia esse período de descanso. Devido ao aumento de responsabilidades, cheguei também a trabalhar aos sábados, o que acabou gerando muito estresse, mas também funcionou como outro aprendizado. Tive que criar um hobby e aprendi que precisava de algum tempo livre para recarregar as energias.
As viagens que o trabalho proporciona
Meu objetivo na indústria farmacêutica já como gerente e depois diretora foi de mostrar que a América Latina tinha capacidade, profissionais de saúde capacitados, legislação, pacientes e doenças. Sim, os prazos de aprovação de estudos não eram os melhores, mas recrutávamos muito rápido e entregávamos um trabalho de qualidade. Fazíamos reuniões regionais na Argentina, na Colômbia, no Peru, no Chile, no México, em Costa Rica, na Guatemala, enfim, em quase toda a América Latina tanto com as equipes internas quanto com os médicos envolvidos nos estudos internacionais.
Participei de dezenas desses encontros, nos quais cada estudo era discutido em detalhes. Essa prática é comum na pesquisa clínica. Toda a inserção da costa leste e oeste dos Estados Unidos e depois a da Europa, pela primeira vez, deu-se por meio da pesquisa clínica. Foi uma experiência emocionante, porque pude conhecer, inclusive, a República Tcheca, onde meu pai nasceu. Eu não levava família nessas viagens, mas, nessa em particular, levei a minha mãe. Também conheci outros países da Europa como Inglaterra, França, Portugal, Espanha, Grécia, Itália e Bélgica. Já na PPD, tive oportunidade de conhecer a Ásia, especificamente Pequim. A PPD havia adquirido uma empresa na região, e fui para treinar a equipe que estava sendo absorvida. Fui por duas semanas e vivi uma ótima experiência, estando em contato com uma cultura muito diversa.
A importância da proatividade e do conhecimento na dinâmica profissional
O conhecimento básico na área é fundamental, porém, além do básico, se aventurar por posições laterais complementam nossa vivência e nos dá uma visão do todo, até mesmo para identificar outras opções de carreira. No início da minha carreira, a área não era tão específica. Mencionei que, naquela época, o Albert Einstein (HIAE) tinha de tudo em um só andar. Atualmente, os hospitais têm andares especializados: um inteiro de cardiologia, outro de oncologia, de transplantes etc. Na indústria farmacêutica, quando comecei, era monitora, mas inseria os dados nos sistemas, gerenciava os medicamentos que iam para os centros e cuidava das aprovações regulatórias entre outras responsabilidades.
Hoje em dia, no entanto, é diferente: uma especialista de monitoria se dirige ao centro de pesquisa e revisa os dados do prontuário com os registros do estudo, deixando então a parte de entrada de dados e da aprovação regulatória para outra equipe. Ainda assim, é importante conhecer o processo como um todo, do começo ao fim. Desse modo é possível tanto expandir o conhecimento quanto, futuramente, caso exista algum interesse, trocar de área e reorientar a sua carreira para outro lado.
Já a proatividade, esta deveria ser um requisito para todos os funcionários. Nada “cai do céu”. Se a pessoa não manifesta seu interesse ao seu gerente, não tem como ele saber e inseri-la em projetos desafiadores. Por exemplo, um projeto novo está chegando e o gerente sabe qual funcionário tem talento, mas não sabe se ele está interessado. Então, juntando talento e interesse rapidamente, se aloca aquele colaborador na empreitada correta. Além, é claro, da proatividade nas tarefas do dia a dia, o que agiliza o trabalho de todos.
Inteligência emocional e o valor de um hobby
A inteligência emocional é importante durante todo o decorrer da jornada, e não só porque trabalho na área da saúde. Não há crescimento profissional sem zelo funcional. Desde o começo da minha carreira, isso foi um pouco natural, então percebi que estava no caminho certo. Quando se é enfermeira, vivenciam-se momentos desafiadores, como lidar com pacientes que sofrem de falta de ar. Nessas ocasiões, parecia que eu sentia junto com o paciente. Era muito jovem, recém-casada e meu marido não era dessa área. Mas, ao chegar em casa, terminava a jornada; era como se eu “passasse uma borracha”. Não tinha tarefa de casa. Acabou minha vida do hospital, em casa era outro mundo, outra coisa. Essa clareza ajudou bastante no mundo corporativo. Mesmo assim, havia o desgaste.
Um escape é fundamental, precisava de um hobby. Enquanto o meu marido ia jogar golfe, eu ficava trabalhando. Isso aconteceu até o momento em que descobri a recreação como algo muito importante. Comecei a jogar golfe também e entendi por que meu marido sumia durante quatro, cinco horas! Gostei muito e jogo há doze anos, às vezes em campeonatos. Ter esse escape e buscar manter a qualidade de vida é algo superimportante. Hoje, vejo claramente o valor disso, de separar as coisas e poder desfrutar do trabalho duro, dessa jornada de 30 anos de trabalho.
O perfil do novo líder
A liderança mudou bastante desde a minha época. Hoje, o engajamento dos funcionários é muito maior e apreciado. O respeito pela diversidade é essencial; todos precisam de gestão customizada, pois as necessidades são diferentes. Uma pessoa aprende de uma maneira mais lenta, outra, mais rápida, enquanto uma terceira precisa da experiência mais ativa e há quem se dê melhor pela tecnologia. Uma vez, ouvi algo que me marcou: a liderança deve inspirar. Qual o sentido, qual o incentivo de ter um chefe com o qual não se aprende nada? Verdadeiros líderes devem inspirar a partir de seus valores. Existe uma expressão em inglês que resume isto: walk the talk. Não adianta falar algo que não se segue. Essa parte dos valores é preciosa, como agir eticamente: o respeito ao outro mostra seu posicionamento na empresa.
O bullying e a sua superação
É um processo árduo, que só se percebe quando já se está fraca. Depois da confirmação pela psicóloga, tive mais acesso às informações do fenômeno, o que me ajudou imensamente. No meu caso, sem entrar em detalhes, foi provocada por guerra de poder. Tinha uma posição alta e outros queriam meu lugar. Recebi apoio do meu marido, inclusive ganhei dele um exemplar de “A arte da Guerra”, do Sun Tzu, o que me deu outra perspectiva para lidar com a situação. Além do suporte familiar, incluindo o carinho e conversas com minha filha, a ajuda profissional e a minha entrada em um grupo de apoio para mulheres foram essenciais.
Oportunidades no setor para o Brasil
Na pesquisa clínica, existem excelentes oportunidades. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) faz um trabalho sensacional. Nós seguimos um guia internacional de boas práticas clínicas (ICH), no qual a Anvisa é muito ativa nas atualizações. Ela influencia e compartilha os nossos procedimentos e acaba também mudando nossa legislação. Porém, existem melhorias fundamentais necessárias na pesquisa clínica, na parte de legislação, principalmente para acelerar os processos regulatórios. Hoje, leva-se seis meses e meio para aprovar um estudo clínico, desde o comitê de ética, passando pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e depois pela Anvisa, o que é tempo demais.
Com isso, a América Latina vai ficando para trás em comparação com outras regiões, já que o número de estudos clínicos alocados acaba diminuindo significativamente. Atualmente, ainda possuímos uma porcentagem muito pequena dos estudos internacionais. Infelizmente, perdemos com a expertise dos nossos médicos, que publicam e sabem muito, mas não têm a oportunidade de trabalhar com novas drogas nem nossa população tem o hábito de participar desses estudos. Portanto, a parte regulatória e as aprovações têm muito o que melhorar. Com relação aos voluntários e à ética em pesquisa, temos leis equiparadas às internacionais.
Sobre a importância do ESG
O ESG (Environmental, Social and Governance) traz de volta o básico de respeito ao meio ambiente e aos funcionários, além da transparência interna da companhia para garantir alinhamento. Sempre trabalhei em empresas nas quais estou alinhada aos valores corporativos.
A Thermo Fisher Scientific tem objetivos reais que são monitorados, como a diminuição de emissão de gases das fábricas, que é uma das iniciativas dentro de um rol muito amplo. Nas comunidades, por exemplo, lidero o trabalho voluntário feito pela empresa no Brasil. Nas escolas públicas, no ano passado, fizemos um jardim sensorial em parceria com a ONG Melhores Dias. Em outra escola, investimos em experimentos de ciências (Science Technology, Engeneering and Mathematics – STEM), experiência que repetiremos em outro colégio agora em novembro. Penso que, quando se estimula a curiosidade de uma criança, talvez ela se lembre quando estiver escolhendo carreiras. Podem surgir pensamentos e lembranças como “eu gostava tanto daquele experimento laboratorial”. Seja engenharia, matemática, ciências básicas, o essencial é dar aquela oportunidade e incentivar a curiosidade. “Líquidos e sólidos se misturam ou não? Misturou, e como fica no final?”. É bem importante esse incentivo, não pela redução do imposto, mas sim pela atividade concreta que é feita.
Cada vez mais os funcionários estão alinhados a isso, especialmente os jovens que querem buscar empresas sérias, comprometidas com o respeito que demonstram ao meio ambiente e à área social. Uma corporação em que se possa ter acesso a relatórios, detalhando as atividades realizadas é valorizada na hora da escolha.
O que estou lendo
Meu livro de cabeceira atual é “Outliers”, de Malcolm Gladwell. Também li, e adoro, “It’s not a glass ceiling; It’s a sticky floor”, de Rebecca Shambaugh, que ganhei do RH quando entrei para um time inteiramente masculino, do chefe aos pares. Além de livros, leio muitos artigos da McKinsey para me manter atualizada tanto na área em que atuo quanto em áreas de ciências sociais como liderança corporativa.
Fonte: Histórias de Sucesso – Exame.